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Em quase nove anos enquanto colunista da mktonline, tenho escrito sobre os mais variados tópicos. Permitam-me hoje, porém, partilhar uma experiência pessoal que pode, quem sabe, levar-nos a pensar. Hoje, queria falar da minha experiência de trabalho na Guiné-Bissau. Não que seja um assunto que não interesse a quem trabalha na área internacional, mas porque é necessário que se saiba o que mais pode encerrar uma peripécia desta natureza… Aterrei em Bissau com mais de uma hora de atraso, o que, dadas as circunstâncias, até nem é mau dado que por vezes simplesmente o voo é cancelado, e noutras o atraso é bem maior. Como sempre, tiro o visto na alfândega, sob exibição de uma carta de chamada da ONG com quem colaboro. Para quem não sabe, Bissau é o único aeroporto para onde a TAP voa mas onde não pernoita. Dizem que é porque são apenas 4 horas de voo e por isso o pessoal de bordo pode fazer a ida e o regresso sem problemas. Dizem também que é porque assim se pode trabalhar de madrugada, coisa que é impensável em aeroportos europeus. Talvez seja por isso. Ou talvez não… Aterrei em Bissau numa das 365 noites quentes do ano e, como sempre, deparei-me com um mar de gente que, às 3 da manhã, faz do aeroporto espaço para qualquer espécie de comércio… E, como sempre, voltei a confrontar-me com os meus medos da noite africana, num país onde não há ainda iluminação pública e onde a maioria dos geradores se apaga antes das onze da noite. Mais uma vez lamento ter-me esquecido da lanterna. Mais uma vez vou com a luzinha do telemóvel em riste, à espera de não me deparar com o meu maior medo: o bicho comprido rastejante por quem nutro uma fobia quase irracional… A Guiné-Bissau é um país com 1,6 milhões de habitantes, cuja temperatura média anual varia entre os 25 e 27,6 º C e onde as taxas higrométricas podem chegar a 85%, no tempo das chuvas. Eu costumo ir nesta época, período que coincide com as minhas férias, e em que aproveito para ajudar, colaborando numa organização com projectos que visam estimular a produção e comercialização de produtos locais. À formação junta-se a consultoria e a ambos respondem as organizações implicadas com um entusiasmo de fazer inveja às economias mais desenvolvidas. Este ano, o projecto implicava deslocações aos locais de produção para contacto com os produtores no seu próprio espaço. Assim, mais de 2000 quilómetros tiveram de ser percorridos para ir ao seu encontro – “nha terra…” - como se diz por aqui. Parece uma aventura? Talvez não… Reunir com os pequenos produtores de óleo de palma, de vinagre de limão ou de sumo de caju não é uma aventura, apesar de o português não ser a língua mais falada. É, antes, a língua que teimosamente se insiste em considerar a língua oficial, quando na verdade é apenas, nalguns casos, uma 3ª língua, depois das línguas das etnias locais, como o fula, o mandjaco ou o bijagó, e só depois do crioulo, a língua verdadeiramente unificadora da população da Guiné-Bissau. Ou seja, para manter algumas reuniões é preciso ter “tradução simultânea em sequência”: do português para o crioulo e deste para a língua (e não dialecto) local e vice-versa… Não é uma aventura reunir na tabanca à sombra de um poilão, arranjar cadeiras e assentos improvisados para todos, chamar o régulo ou o chefe da tabanca, reunir as mulheres, acalmar as crianças pequenas para quem é sempre novidade ver o branco n’pelele (branco muito branco, como todas as crianças nos chamam). Não é uma aventura conseguir que todos os interessados consigam marcar presença, dada a quantidade de manifestações culturais a que é importante estar presente, como o Tchur (vulgo funeral) ou o Toca-Tchur (cerimónia festiva que se segue ao funeral e que se destina a “encomendar” a alma do falecido para que seja bem recebida no além)… Não é uma aventura compreender as idiossincrasias próprias de um país que, aparentemente católico e muçulmano, tem como religião soberana e aglutinante o animismo. O irã (divindade principal neste panteão animista) tem poderes extensíssimos, que podem determinar quem é culpado e quem é inocente, quem é a vítima e o agressor, quem está certo e quem está errado. Pode ainda manifestar-se sob formas muito distintas e pode inclusive determinar quem deve morrer e quem pode viver. Não é uma aventura lidar com 33 etnias diferentes, com rituais próprios e curiosos que vão desde a excisão feminina ao roubo como ritual de prova de matchundade. Não é uma aventura percorrer milhares de quilómetros por línguas de terra que foram outrora estradas. Não é uma aventura abrir caminho sobre o emaranhado de arbustos que se levantam todos os dias. Não é uma aventura palmilhar a pele à procura de borbulhões onde passar Fenistil, nem tão pouco tomar as variadíssimas vacinas e profilaxias imperativas para entrar no grande continente negro. Também não é uma aventura tomar banho de caneco, cozinhar a carvão, ler à luz da vela, dar voltas na cama para lidar com o calor, matar os mosquitos e demais insectos antes de adormecer e já depois de se estar a dormir… Já uma aventura poderia ter sido, na minha insignificante opinião, o encontro com o escabroso animal, que desta vez me apareceu mesmo ao pé da porta do quarto… Não fora aproveitar a oportunidade para vencer o medo antigo, e bem o poderia ter sido... Uma verdadeira aventura, não é ir a Bissau trabalhar nestas circunstâncias, conhecer o país de lés-a-lés, ver paisagens fantásticas de um verde luxuriante e inebriante, cruzar-me com espécies de fauna e flora que só antes conhecia dos livros. Não é aprender crioulo, compreender a riqueza das diferentes etnias que fazem este povo. Não é compreender a importância de um “Bom dia! Kuma Ki bu mansi? Kuma di curpo?”, não é perceber que alguém vai mesmo responder a estas questões e retribuir o cumprimento. Não é aprender a importância dos sorrisos simples e sinceros, não é fazer rir as crianças e cumprimentar os anciãos. Uma aventura é, quando o corpo pede fausto e quando a alma apela ao aconchego, ficar na Guiné, trabalhar na Guiné, daqui fazer a base de partida e de chegada após um dia de trabalho... Aqui procurar o entretenimento ao fim-de-semana… Aqui “fazer vida”… As jornadas de 2 semanas não são uma aventura na Guiné. As jornadas de 2 semanas são uma experiência incrível, uma prova à nossa capacidade de sair da nossa zona de conforto diária, um teste importante à nossa capacidade de entendimento do homem no mundo multicultural que o rodeia. Mas a aventura é de quem fica. A aventura é a resiliência de quem continua, a capacidade de persistência de quem, após horas no trânsito, sob as fumaradas quentes dos escapes e dos odores do lixo a céu aberto, depois dos solavancos pelas ruas esburacadas, das horas passadas a tentar aceder a uma Internet lenta, das contrariedades em lidar com a sudação, dos obstáculos causados pelas longas esperar em todo o tipo de serviços, das dificuldades da falta de ar condicionado, das picadas dos insectos, das contingências que levam inevitavelmente à baixa produtividade…, voltar a casa e enfrentar com um sorriso nos lábios o dia que se segue… Aventura é a de quem enfrenta a falta de luz, a falta de água, ou de serviços básicos; é a de quem tem o receio de ficar doente e ir parar ao Hospital Simão Mendes, é a de quem tem medo da noite e dos bichos que ela oculta, de quem tem dificuldade em lidar com a humidade e o calor que marcam o clima de lés-a-lés… Aventura é continuar na Guiné porque se acredita que, quer para nós próprios, quer para os guineenses, o amanhã há-de ser um dia melhor… Coragem é a daqueles que, tendo a opção do bem-estar quotidiano ao dispor, decidem dedicar a sua vida, e não apenas um pequenino pedaço dela, à maior virtude que é… fazer o bem e fazê-lo bem. A esses venturosos portugueses (ou não) que, movidos por interesses altruístas, pessoais ou profissionais, trabalham fora de casa, em condições mais difíceis do que aquelas que porventura enfrentariam em casa, um grande - bem-hajam! |
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Atualizado em 12.10.2011 |